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“Me vendaram e senti minha carne sendo cortada”, diz embaixadora da ONU contra a mutilação genital

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Waris Dirie ajuda a impedir que crianças e jovens sejam submetidas à prática.

O dia ainda não tinha amanhecido quando a menina Waris Dirie foi acordada pela mãe em uma madrugada de 1970. Apesar da pouca idade, apenas cinco anos, sua família decidiu que era hora de submetê-la a um ritual de passagem para a vida adulta realizado em sua tribo na Somália: a mutilação genital. Em entrevista exclusiva ao R7, Waris, que hoje é mãe de quatro filhos e embaixadora da ONU contra a mutilação, lembrou o trauma de infância e contou como transformou seu sofrimento em esperança para centenas de meninas pelo mundo.

— Uma cigana chegou e me disse para sentar em uma pedra. Não houve conversa. Ela era estritamente profissional. Pegou uma lâmina quebrada e eu vi sangue seco na borda. Elas me vendaram e a próxima coisa que eu senti foi a minha carne sendo cortada. Logo desmaiei.

Waris é apenas uma das mais de 140 milhões de vítimas que estão espalhadas por todo o mundo, de acordo com estimativas das Nações Unidas. O procedimento é realizado, principalmente, por tribos e comunidades que julgam impura a genitália externa feminina.

A mutilação genital feminina é a retirada de parte do órgão sexual da mulher ou menina, em sua maioria o clitóris e os pequenos lábios da vulva, explica a ginecologista do Hospital Moriah Patrícia Costacurta de Sá Porto. Em alguns casos, se costura a entrada da vagina deixando apenas um pequeno orifício para a saída do sangue menstrual.

Quando retomou a consciência, Waris estava com as pernas amarradas, para ajudar na cicatrização. Neste momento, ela viu a mãe e a irmã mais velha construindo uma cabana precária. Era parte do ritual. A menina deveria se recuperar sozinha no meio da mata, recebendo apenas água e comida da família.

— A mutilação genital não pode ser encarada como uma tradição cultural ou religiosa, ela é um crime. Graças à iniciativa de diversas ONGs, o número de casos tem diminuído nas últimas décadas, mas a ignorância e falta de educação tanto das meninas quanto das famílias são os principais obstáculos para o fim da mutilação.

Historicamente, a prática predomina nas regiões oeste, leste e nordeste da África e em alguns países na Ásia e do Oriente Médio, mas também há milhares de casos entre as populações de imigrantes que vivem na Europa ocidental, América do Norte, Austrália e Nova Zelândia, segundo informações da ONU.

Casamento forçado

Além de serem mutiladas, muitas meninas e jovens de tribos africanas são forçadas a aceitar casamentos arranjados. Esse também foi o caso de Waris. Aos 13 anos, seu pai a apresentou ao pretendente escolhido por ele: um homem de 60 anos. A menina se recusou a aceitar o matrimônio e, com a ajuda da mãe, fugiu de casa.

Waris vagou pelo deserto da Somália, se hospedou na casa de parentes e seguiu para Londres aos 18 anos. Na capital britânica, a jovem foi descoberta por um famoso fotógrafo e se tornou uma modelo de sucesso. Seu rosto e sua história passaram a ser conhecidos em todo o mundo.

Em 1996, o então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, a nomeou embaixadora das Nações Unidas e, até hoje, ela é conhecida como um dos maiores símbolos da luta contra a mutilação. Sua história de superação foi contada em um livro e em um filme intitulados Flor do Deserto.

Luta mundial contra mutilação

Na batalha de Waris contra a mutilação, ela criou em 2002 a Fundação Flor do Deserto. A entidade dá uma ajuda de custo às famílias para que, em troca, elas não submetam as meninas à mutilação genital ou mesmo ao casamento forçado.

— Nós pagamos US$ 30 [equivalentes a cerca de R$ 86] por mês às famílias, damos alimento e assistência médica até que elas completem 18 anos e terminem os estudos. Os pais precisam levá-las aos nossos pediatras duas vezes por ano para que os nossos médicos verifiquem se a integridade delas está sendo preservada.

Após serem mutiladas, meninas de tribo queniana também são vítimas de casamentos forçados

Segundo Waris, como muitas dessas pessoas vivem com menos de US$ 30 por mês, a oferta atrai muitas pessoas e há “uma longa lista de espera de pais que gostariam de entrar”. A primeira menina assistida pela fundação foi Safa, a criança que interpretou Waris no filmeFlor do Deserto. Além dela, cerca de mil meninas recebem a assistência da fundação atualmente.

Para as meninas que já foram mutiladas, a fundação oferece acompanhamento médico e psicológico, já que, devido à forma como o procedimento é feito, na grande maioria das vezes, sem anestesia e antissepsia, com lâminas comuns e a vítima imobilizada, elas correm o risco de terem sequelas para o resto da vida.

De acordo com a ginecologista, a complicação imediata é a hemorragia. As vítimas correm sério risco de sofrer infecções e, em longo prazo, devido ao pequeno orifício que é deixado para drenar o sangue da menstruação e a urina, elas podem chegar a um quadro de hematometra [sangue da menstruação retido no útero-vagina].

— Essa complicação causa muita dor abdominal e, se não abordado com urgência, pode levar à morte.

Além disso, Patrícia ressalta que, no caso de gravidez, a passagem do bebê pelo canal vaginal também pode ser prejudicada na hora do parto, podendo trazer riscos para o bebê e para a mãe.

Hoje, a Fundação Flor do Deserto está presente em 12 países diferentes e, desde que começou a tratar de vítimas mutiladas, 150 meninas já passaram pela cirurgia de reconstrução genital.

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Fonte: R7

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