A primeira tese desenvolvida no sistema de cotutela internacional no Programa de Pós-Graduação em Medicina Tropical do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) jogou luz sobre um importante problema de saúde pública: a disseminação do HIV na fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa. Por meio do levantamento de dados e de entrevistas, o estudo apontou fatores que contribuem para as infecções pelo vírus e para os casos de aids.
A pesquisa foi realizada pela bióloga Flávia Divino, que cursou o doutorado no IOC e na Universidade da Guiana, na Guiana Francesa. A tese foi orientada pelos pesquisadores Paulo Peiter, do Laboratório de Doenças Parasitárias do Instituto, e Mathieu Nacher, da universidade franco-guianense. Com a defesa, Flávia recebeu dois títulos de doutora: em Medicina Tropical, pelo IOC, e em Diversidades, Saúde e Desenvolvimento na Amazônia, pela Universidade da Guiana.
Iniciativa importante para a internacionalização do ensino na Fiocruz, a cotutela permite a dupla titulação dos estudantes, que desenvolvem seus estudos de pós-graduação na Fundação e em instituições estrangeiras, através de acordos de cooperação. “A cotutela é diferente de um sanduíche ou de um estágio porque você é aluno das duas instituições. Na pesquisa, a cotutela abriu portas para os dois lados da fronteira. Ao mesmo tempo, possibilitou aprender uma nova língua, fazer disciplinas na Universidade da Guiana e conviver com alunos de doutorado de lá. Tive muitas oportunidades”, comemorou Flávia, que recebeu também uma permissão de residência do governo francês após a conclusão da tese, com autorização para trabalhar no país até 2026.
Com experiência no estudo da saúde nas fronteiras, Paulo Peiter ressalta que os resultados alcançados na tese se tornaram mais robustos com o sistema de cotutela. “A grande dificuldade do estudo da saúde nas fronteiras é conseguir dados dois lados. A cooperação entre instituições, através da cotutela, foi fundamental para o acesso a informações e realização do trabalho de campo na Guiana Francesa.
Fazer o mesmo estudo nos dois países permitiu compreender a dinâmica do HIV/aids naquela região”, salienta o pesquisador, que integra o projeto ‘Observatórios Transfronteiriços do Meio Ambiente, do Clima e das Doenças Vetoriais – Laboratório Internacional Misto’ (LMI Sentinela), mantido em parceria pela Fiocruz, Universidade de Brasília (UnB) e Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento (IRD), da França.
A pesquisa foi realiza nas cidades de Oiapoque, no Amapá, e Saint Georges de l’Oyapock, na Guiana Francesa, situadas de lados opostos da fronteira e separadas pelo Rio Oiapoque. Para a realização do estudo, Flávia morou por seis meses na cidade brasileira e dois meses na comuna francesa. A investigação incluiu levantamento dos registros de HIV e aids, mapeamento dos serviços de saúde, análise de prontuários, observações das atividades nos serviços e do cotidiano das cidades, além de entrevistas com profissionais de saúde e com a população.
O trabalho de campo contemplou ainda a região de Vila Brasil, vilarejo situado a 6 horas de barco de Oiapoque, que concentra circulação de pessoas e comércio ligados ao garimpo. A atividade, que é majoritariamente ilegal, costuma atrair brasileiros para o território do país vizinho.
Segundo Flávia, o estudo apontou dinâmicas de disseminação do HIV que se relacionam com problemas na organização e oferta dos serviços de saúde e contextos sociais de vulnerabilidade. “O Brasil é pioneiro na luta contra o HIV, fornece medicamentos gratuitamente e nosso programa de controle é reconhecido no mundo inteiro, mas é preciso olhar com mais cuidado para os territórios. O Oiapoque apresenta falhas no acesso à saúde e na gama de cuidados que é preconizada no Ministério da Saúde, porque existem características únicas naquele ambiente”, comenta a recém-doutora.
A fronteira demarcada pelo Rio Oiapoque divide dois territórios com grande desigualdade. De um lado, o Amapá, um dos estados mais pobres do Brasil. De outro, a Guiana Francesa, domínio ultramarino francês e único território europeu nas Américas. No Amapá, um dos dados que caracterizam a epidemia de HIV é o aumento anual dos casos de aids, em contraste com o cenário de estabilização ou queda na maior parte do Brasil. Marcada pela baixa imunidade, que leva ao desenvolvimento de complicações, a aids ocorre quando não há tratamento adequado da infecção pelo HIV.
A Guiana Francesa quase não apresenta casos de aids. Entre os países da América Latina, o território alcançou a maior proporção de pessoas infectadas em tratamento e com carga viral indetectável. Porém, anualmente, novos casos de pessoas com HIV são registrados no território.
“A condição de fronteira é determinante para a configuração da epidemia de HIV/aids na região. Oiapoque e Saint Georges são cidades gêmeas, que dependem uma da outra em questões econômicas e sociais, mas têm assimetria muito grande, com diferenças de todos os níveis”, ressalta Flávia.