Presidente Dilma sancionou o uso do composto por pacientes com câncer. Agência afirma que pessoas poderão estar expostas a riscos com medida.
A liberação do uso da fosfoetanolamina sintética para pacientes com câncer, publicada nesta quinta-feira (14) no Diário Oficial da União, provocou manifestações diversas. Nos grupos de pacientes com câncer do Facebook, a decisão foi comemorada e vista como uma vitória. Já entre especialistas e órgãos como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a medida provocou preocupação.
Desenvolvida no campus de São Carlos para o tratamento de tumor maligno, a substância é apontada como possível cura para diferentes tipos de câncer, mas não passou por esses testes em humanos e não tem eficácia comprovada, por isso não é considerada um remédio. Ela não tem registro na Anvisa e seus efeitos nos pacientes ainda são desconhecidos.
‘Preocupação profunda’ X ‘vitória’
A Anvisa adiantou ao G1 que vê a lei com “uma preocupação profunda”. “Cria-se uma situação de exceção em que pessoas poderão estar expostas a diversos riscos sanitários”, afirmou o órgão.
“Com o produto estando fora do ambiente regulatório, não há como a Anvisa fiscalizar o processo de fabricação e distribuição, o que também resulta em riscos sanitários para a população. Afinal, sem os estudos clínicos necessários, não há como assegurar que a fosfoetanolamina é segura e eficaz”, completou.
Durante a tarde, em nota oficial, a Anvisa informou que está participando da elaboração de regulamentação para o uso, pesquisa e fornecimento da substância. “A regulamentação reforça o estudo da substância, implementando um Comitê Gestor, com o objetivo assegurar e acompanhar a realização de pesquisa científica em terapias inovadoras, garantindo a segurança e a eficácia dos tratamentos contra a neoplasia maligna, além de estimular a pesquisa científica, os testes pré-clínicos e clínicos necessários para o registro sanitário da fosfoetanolamina sintética junto à Anvisa”, informou.
A nota também informou que está sendo sugerido a prescrição médica em talonário numerado que permita o rastreamento do paciente, com justificativa para o uso, além da realização de exames regulares para acompanhamento do estado de saúde do usuário.
“Os estabelecimentos fornecedores de fosfoetanolamina sintética deverão manter balanço específico com a movimentação da substância. Além disso, os interessados arcarão com todos os custos para aquisição da fosfoetanolamina sintética, pois é um medicamento que não foi incorporado do Sistema Único de Saúde (SUS). Para isso, seria necessária a avaliação pela Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS), que faz análise baseada em evidências, levando em consideração aspectos como eficácia, acurácia, efetividade e a segurança da tecnologia”, destacou.
Ainda segundo o comunicado, o termo de responsabilidade, que deverá ser assinado pelos pacientes, deve especificar que o uso da fosfoetanolamina sintética não substitui as terapias convencionais. “Bem como que o paciente se compromete a realizar exames periódicos para acompanhar a evolução do tratamento e assume os riscos de eventuais efeitos colaterais dele advindos”, concluiu.
A analista de sistema Bernadete Cioffi, que tem metástase nos ossos e usa a substância há seis meses, viu a liberação como uma vitória para os pacientes com câncer. Ela afirma que teve melhora significativa na saúde após o uso da pílula.
“É o primeiro passo e o mais importante, conseguir a lei. Os pacientes precisam fazer o uso imediatamente, não existe longo prazo para quem tem câncer, é para ontem. Muitas vidas foram perdidas durante o processo e é importante que os pacientes possam fazer o uso imediatamente da fosfo. Sabemos que temos um longo caminho para conquistar, como a produção e distribuição, mas o mais importante já foi conquistado”, destacou.
Pesquisa em São Paulo e produção
A substância está sendo pesquisada paralelamente pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e pelo Governo do Estado de São Paulo.
Os estudos do MCTI ainda estão não fase inicial e não há uma data para o início dos testes clínicos, enquanto a pesquisa coordenada pelo Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) aguarda a produção do composto por um laboratório de Cravinhos para o início dos testes em humanos.
Questionada sobre o impacto da lei nessa produção, a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo disse que a sanção não muda o cronograma de síntese pelo laboratório e o encapsulamento pela Furp.
Já o laboratório de Cravinhos informou que tem interesse em produzir a substância em escala comercial. A direção da empresa fará uma reunião na tarde desta quinta-feira para debater essa possibilidade.
Oncologistas criticam a lei
O oncologista Helano Freitas, coordenador de pesquisa clínica do A.C.Camargo Câncer Center, em São Paulo, chama a atenção para o fato de que a lei não exige prescrição médica para a aquisição do produto, apenas um laudo médico que comprove o diagnóstico. “Dessa maneira, estão transferindo toda a responsabilidade para o paciente de julgar se algo é bom ou não para ele”, disse.
Isso pode levar a uma situação em que o paciente escolha seguir o tratamento com a fosfoetanolamina sem o devido acompanhamento de seu médico. “Respeitamos o livre arbítrio, mas precisamos informar adequadamente os pacientes para que eles não incorram em decisões precipitadas acreditando em informações que ainda não têm comprovação”.
Além disso, como o produto não segue as regras de aprovação de medicamentos no país, não haverá farmacovigilânica, procedimento de acompanhar a segurança e desempenho de medicamentos lançados no mercado. “Isso pode significar que, se houver efeitos colaterais, pode demorar muito mais tempo para se perceber a situação porque ninguém estará catalogando esses efeitos para entender se têm ou não relação com a substância”.
“Foi uma decisão puramente populista porque não tem nenhum embasamento científico, nem pesquisa, e não existe mágica na oncologia. O câncer é uma doença com muitas caras, muitos mecanismos. A presidente, a Câmara e o Senado poderiam ter ouvido especialistas”, afirmou o Hakaru Tadokoro, médico assistente do Departamento de Oncologia Clínica e Experimental da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
No curto prazo, o especialista entende que a medida provocará o aumento da procura pelo composto. Já no médio prazo, Tadokoro acredita que poderão surgir casos de pessoas relatando melhora com o uso da substância. Essas situações, porém, estariam relacionadas ao “efeito abscopal”, uma situação rara em que o sistema imune combate o tumor, e não à fosfoetanolamina. “Não pode existir um remédio que aja em todos os tipos de câncer. Isso é uma utopia”.
O médico afirmou ainda que, no caso de seus pacientes, não recomendará o consumo da substância. “Pode ser que ela bloqueie o tratamento convencional. Vou ser totalmente contra”.
Órgãos técnicos são contra
O presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), Gustavo dos Santos Fernandes, disse entender que o posicionamento é político, mas é contra por não existir nenhum órgão técnico de saúde envolvido. “É justamente isso o que me preocupa, a gente não se posiciona contra o paciente, a parte frágil disso. Eu fico incomodado que um jogo político passe por cima da parte técnica e que use as emoções das pessoas e o medo da morte como instrumento. É isso o que me deixa chateado. Repito: estamos sempre a favor dos pacientes”, frisou.
Segundo o presidente do órgão, a liberação vai gerar um distúrbio entre pacientes e médicos. “A orientação do Conselho Federal de Medicina (CFM) é que a substância não seja prescrita. Quem vai se responsabilizar por efeitos colaterais que a gente não conhece? O médico fica em uma posição em que ele não sabe como lidar, não sabe o que esperar de positivo ou de negativo. O paciente vai pressionar e se ele prescrever no final a responsabilidade vai ser dele [médico] e não de quem aprovou. A presidente não vai se responsabilizar por isso, nem deputados, nem senadores”, afirmou Fernandes.
O G1 procurou o CFM e foi informado pela assessoria de imprensa que o órgão vai se pronunciar sobre o assunto ainda nesta tarde.
A Sociedade Brasileira de Cancerologia (SBC) também é contra. Em nota, o órgão afirmou que até o momento não há dados suficientes que comprovem a eficácia e a segurança do composto para se prescrever como modalidade de tratamento. A inexistência de uma análise minuciosa e séria, com base nos critérios científicos aceitos mundialmente, além de seu registro definitivo na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), não permitem que a fosfoetanolamina sintética seja considerada como um medicamento.
“Não podemos apoiar a legalidade de algo que não apresenta valor médico. A SBC, enquanto entidade representativa da especialidade no Brasil, defende o debate às problemáticas em torno do combate ao câncer no país, sem oportunismos, a partir de atitudes mais responsáveis que visem sua efetividade no tratamento de uma doença de grande impacto para a saúde pública”, diz o texto.
Liberação
A presidente Dilma Rousseff sancionou a lei que autoriza o uso da fosfoetanolamina sintética por pacientes diagnosticados com tumores malignos e a medida entrou em vigor nesta quinta-feira (11).
A determinação afirma que poderão fazer uso da substância, por livre escolha, pacientes que possuam laudo médico que comprove o diagnóstico e que assinem um termo de consentimento e responsabilidade.
A lei nº 13.269 estipula ainda que a opção pelo uso voluntário do composto não exclui o direito de acesso a outras modalidades terapêuticas e que ficam permitidos a produção, manufatura, importação, distribuição, prescrição, dispensação, posse ou uso da substância direcionados ao uso previsto na lei, independentemente de registro sanitário, em caráter excepcional, enquanto estiverem em curso estudos clínicos acerca dessa substância.
Por fim, coloca que “a produção, manufatura, importação, distribuição, prescrição e dispensação da fosfoetanolamina sintética somente são permitidas para agentes regularmente autorizados e licenciados pela autoridade sanitária competente”.
Custos
O Ministério da Saúde afirmou, em nota divulgada nesta quinta, que está participando da elaboração de uma regulamentação para o uso, pesquisa e fornecimento da fosfoetanolamina sintética. Segundo o comunicado, os pacientes deverão arcar com todos os custos para aquisição da fosfoetanolamina, pois trata-se de um produto que não foi incorporado ao Sistema Único de Saúde (SUS).
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Fonte: G1