Em entrevista ao site de VEJA, Sydney Sanches afirma que processo contra a presidente não representa uma banalização do impedimento: ‘Há fundamento’
Aos 83 anos, o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Sydney Sanches jamais pensou que viveria para testemunhar outro processo de impeachment em julgamento no Senado. Em 1992, ele era presidente do STF e, por isso, comandou a sessão que impediu o então presidente Fernando Collor de Mello – a mesma atribuição que terá o atual presidente da corte, Ricardo Lewandowski, no processo contra Dilma. Afastado dos tribunais desde 2003, Sanches também não imaginou que voltaria a ser procurado para tratar do afastamento de presidentes. Mas é inevitável. Foi ele que, junto com o decano do Supremo Celso de Mello, elaborou o rito do impeachment no caso de Collor, que agora é seguido no de Dilma. Desde que o processo de afastamento foi deflagrado no Congresso, seu trabalho passou a ser revisitado pelo meio jurídico e político – nos últimos dias, tem sido objeto de estudo de Lewandowski e sua equipe.
Como não exerce mais a magistratura, Sanches se sentiu à vontade para expressar suas opiniões sobre o processo de impedimento da presidente. Em entrevista ao site de VEJA, o ex-ministro foi enfático ao refutar a tese governista de que há um “golpe de Estado” em curso no Brasil. Segundo ele, a insistência de Dilma em reproduzir essa tese revela que a presidente está “mal orientada” ou “não quer reconhecer os fatos”. O ex-presidente do STF também disse ver indícios suficientes de que Dilma cometeu crime de responsabilidade nas manobras fiscais feitas para maquiar o desempenho das contas públicas. Na sua estante de livros, em posição de destaque, estão os quatro volumes dos registros do processo de impeachment do Collor no Senado. Ele aponta para a obra e diz: “Foi o destino que me escolheu para presidir o impeachment. Na época, não sabia do tamanho da minha responsabilidade. Tenho mais noção agora.”
Como foi presidir o julgamento de Collor no Senado? Fui um magistrado de carreira. Então, passei a comandar um colegiado que não tinha nada a ver com o Judiciário. Evidentemente, me senti como um estranho no ninho. Mas quando eu mostrei aos senadores que o que eu queria fazer era cumprir a Constituição, a lei do impeachment e o roteiro feito pelo Supremo, eles se acalmaram e não houve mais problemas. Eu disse: se esse roteiro for seguido qualquer decisão nossa não cairá no STF.
Quais as dificuldades em trabalhar com os senadores? O julgamento aconteceu no dia 29 de dezembro de 1992. Final de ano. Os senadores já tinham partido para viagem e precisávamos de quórum para fazer a sessão. Se não houvesse quórum ia ser uma vergonha para todos nós. Eu deleguei isso para os presidentes do Senado, Mauro Benevides, e da Câmara, Ibsen Pinheiro, para que fizessem um esforço extraordinário, porque senão íamos ficar mal na história. Imagina adiar o julgamento do presidente por questão de férias.
E como se sentiu ao final do processo? Ah, foi um alívio. No momento, eu não percebia a extensão da importância do que estava fazendo. Foi o destino que me escolheu para presidir o impeachment. Na época, não sabia do tamanho da minha responsabilidade. Tenho mais noção agora, quando todo mundo voltou a me procurar.
Imaginou que haveria outro processo de impeachment em pouco mais de 20 anos? Eu achei que já não estaria mais aqui para ver outro. Há perigo da vulgarização do pedido de impeachment. Se começarmos a admitir processo de impeachment em todos os casos cria-se uma espécie de terceiro turno. É preciso que haja fundamento, o que há no de Dilma.
O governo tem aventado a possibilidade de pedir ao STF para que examine o mérito do processo. O que o senhor acha isso? Não acredito que isso vá ocorrer. Porque aí não sobra nada para o Senado. Tudo que ele fizer estará sujeito à modificação no Supremo. O julgamento tem que ocorrer de acordo com a Constituição, não pode violar os direitos à ampla defesa, ao contraditório e à produção de provas. Mas só isso. Agora se devia ou não devia ser condenado? Se há ou não crime de responsabilidade. Isso é só o Senado que examina. O STF só fica nas questões processuais.
Como o senhor avalia o discurso governista de que há um golpe em curso? Isso faz parte do exercício de defesa. Agora, é evidente que não há golpe. Se está previsto na Constituição, o instituto do impeachment não pode ser golpe. Se no caso Collor o Supremo organizou o roteiro e o cumpriu e o presidente foi afastado, por que com Dilma não pode? O processo é a mesma coisa, não há golpe nenhum.
Por que ela, então, insiste na tese do golpe? Ela talvez não esteja sendo bem orientada, ou não quer reconhecer os fatos. Quando Dilma diz: eu não roubei, não fui corrupta. Realmente, ela não praticou nenhum crime comum. Crime comum é da competência do Supremo e dá prisão. Crime de responsabilidade – descumprir a lei de execução fiscal, orçamentária ou a Constituição – é do Senado e dá impeachment.
O senhor acha que as pedaladas fiscais são suficientes para caracterizar crime de responsabilidade? Eu acho que há fundamento, ato incompatível com dignidade, com a honra e o decoro do mandato. Isto é, ela usou pedaladas para dissimular uma situação financeira que era desastrosa no país e fez parecer uma situação boa. Com isso, enganou o povo, enganou a opinião pública mundial, com repercussão num momento em que se descobriu que as contas haviam sido rejeitadas pelo TCU. E nisso a economia caiu e ficou parada. O desastre foi muito grande. Em tese, eu acho que existe crime de responsabilidade. Agora, se houve concretamente ou não, são os senadores que vão decidir.
Mas os senadores não ganham atribuição de juízes no Senado? Ganham, mas eles não decidem como juízes de direito, e sim como políticos. Eles não estão sujeitos aos deveres da lei orgânica da magistratura. Decisão judicial sem fundamentação é nula. Mas o senador não precisa nem fundamentar o voto. Ele pode dizer só sim ou não. O julgamento que eles fazem é a avaliação política, do tipo: convém que a presidente continue ou saia do cargo? Ele pode achar que não houve crime de responsabilidade, mas ao mesmo tempo achar que ela não deve continuar no governo. O voto vale do mesmo jeito.
Alguns senadores já declararam como vão votar no julgamento. Considerando que juízes não podem antecipar o juízo, há um problema nisso? Não. Essa é justamente a prova de que eles não são regidos pela lei da magistratura. Os senadores são juízes excepcionais. O Senado atua como juiz excepcionalmente, não de direito, mas só no julgamento em questão. O senador não é aplicador do direito puro e simples. É aplicador das convicções políticas que tiveram da atuação da presidente como governante.
O que o senhor achou sobre a decisão do ministro do STF Teori Zavascki de afastar do mandato o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ)? A decisão é inusitada, mas o caso de Cunha é inusitado também. O cidadão que impede que um órgão da Câmara funcione só porque ele é parte interessada… Não é o ministro do Supremo que está intervindo, mas é ele quem está abusando do poder de presidente. É um caso claro de abuso de poder e desvio de função. Aí se não tiver uma solução no judiciário, não vai ter em lugar nenhum. Agora, em princípio, deputado só pode ser afastado pela Câmara. Mas ele continua impedindo que seja afastado. É um precedente muito interessante para a história do Brasil. Se eu estivesse lá, daria essa liminar também.
Como avalia o protagonismo do STF na atualidade? Na minha época, como juiz, eu não dava entrevista. Já tem muita gente para dar opinião. Hoje, todos eles falam. As coisas vão mudando. Mas nossa concepção na carreira é que juiz é aquele fala nos autos, decidindo e não opinando. Eu falo agora porque é uma questão de foro político. A função do juiz é decidir quem tem razão. É para isso que ele é pago pelo povo. Agora, fui eu o primeiro presidente do STF a determinar a transmissão de uma sessão inteira do STF pela televisão. Era o julgamento de um mandado de segurança impetrado pela defesa do Collor, que pedia direito a ampla defesa e voto secreto na Câmara. Na época, havia a notícia de que teria uma manifestação que tomaria toda a Praça dos Três Poderes. Podia haver até morte, porque a paixão era muito grande. Eu então fui à televisão e disse: “Se vocês querem tomar conhecimento integral de um julgamento do Supremo, veja da sua casa, do seu escritório ou da sua fábrica”. No fim, teve protesto, mas foi bem menor do que o esperado.
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Fonte: Veja