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‘Monstro, prostituta, bichinha’: como a Justiça condenou a 1ª cirurgia de mudança de sexo do Brasil e sentenciou médico à prisão

Atualizado há

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Em 1971, Roberto Farina operou a transexual Waldirene em São Paulo; cinco anos depois, o Ministério Público descobriu o caso e denunciou o cirurgião por lesão corporal gravíssima, expondo a paciente a traumas que ela carrega até hoje.

Waldirene estava constrangida e acuada. Na noite anterior, dois homens haviam entrado na escola onde ela estudava inglês, no interior de São Paulo, para levá-la coercitivamente para o Instituto Médico Legal da capital, a mais de 400 quilômetros. Ao chegar lá, foi obrigada a se despir, mantendo apenas as sandálias de salto plataforma baixo. Era 1976, em plena ditadura militar – o diretor do IML, Harry Shibata, seria posteriormente considerado conivente com a repressão.

Nua, Waldirene passou a ser fotografada. Primeiro, de frente. A jovem loira, de 30 anos, 1,72 metro de altura, olhava para o chão, evitando o homem por trás das câmeras. Seus lábios estavam cerrados. Os braços, colados ao lado do corpo, enquanto as pernas apertavam-se uma contra a outra, em uma tentativa de se proteger da exposição. Pediram a ela que se virasse de um lado, de outro e depois se sentasse. Em cada posição, uma nova foto.

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Waldirene foi ainda submetida a um exame ginecológico. Um espéculo de metal foi introduzido em seu corpo e, dentro dele, uma fita métrica. A cena foi fotografada para registrar o comprimento e a largura do canal vaginal. A jovem, que trabalhava como manicure no interior, havia pedido um habeas corpus preventivo para não ser submetida a tudo isso. Mas a Justiça paulista negou.

O objetivo do IML era extremamente peculiar: verificar se Waldirene era mulher. O nome que constava em sua ficha era outro, Waldir Nogueira.

Cinco anos antes, em dezembro de 1971, Waldirene havia sido submetida a uma cirurgia para mudança de sexo genital – de masculino para feminino. Ou melhor, “para a fixação do seu verdadeiro sexo, que sempre foi feminino”, segundo ela mesma. Essa é considerada a primeira operação do tipo feita no Brasil.

A cirurgia foi realizada no Hospital Oswaldo Cruz, em São Paulo, por Roberto Farina, naquele momento um dos mais importantes cirurgiões plásticos do país. Antes disso, Waldirene foi acompanhada durante dois anos por uma equipe interdisciplinar do Hospital das Clínicas, que a identificou como transexual, condição em que o gênero é diferente do sexo físico.

Em outras palavras, é como ser mulher, tendo nascido em um corpo masculino – ou o contrário. A cirurgia é, assim, uma forma de adequar o corpo ao verdadeiro gênero – quando assim desejado pelo indivíduo.

“Minha vida antes da operação era um martírio insuportável por ter que carregar uma genitália que nunca me pertenceu. Depois da operação fiquei livre para sempre – graças a Deus e ao dr. Roberto Farina – dos órgãos execráveis que me infernizavam a vida, e senti-me tão aliviada que me pareceu ter criado asas novas para a vida”, escreveu Waldirene na época.

Tudo correu bem. Até que, em 1976, o Ministério Público de São Paulo descobriu a intervenção médica e denunciou Farina por lesão corporal gravíssima, sujeita a pena de dois a oito anos de prisão.

Waldirene foi considerada vítima, a sua própria revelia. Os órgãos masculinos retirados na operação foram tidos como um “bem físico” tutelado pelo Estado, “inalienável e irrenunciável”. “Dizer-se que a vítima deu consentimento é irrelevante”, afirmou relatório policial sobre o caso.

“Não há nem pode haver, com essas operações, qualquer mudança de sexo. O que consegue é a criação de eunucos estilizados, para melhor aprazimento de suas lastimáveis perversões sexuais e, também, dos devassos que neles se satisfazem. Tais indivíduos, portanto, não são transformados em mulheres, e sim em verdadeiros monstros”, denunciou o procurador Luiz de Mello Kujawski em pedido de instauração de inquérito policial.

“Eu não tinha lei a meu favor, era tudo contra mim. Eu era tida como puta. Não consigo me desvencilhar dessas coisas até hoje”, diz Waldirene, agora uma senhora de 71 anos, ainda manicure no interior de São Paulo.

“Eu fui pioneira. Segurei bandeira até para quem não me conhece.” Ela não quis ser fotografada hoje por medo do retorno do “pesadelo” que viveu no passado. Para preservá-la, a BBC Brasil omitiu o nome da cidade onde vive. Já Roberto Farina faleceu em 2001, aos 86 anos.

Waldirene nasceu em 1945, no interior de São Paulo. O pai, caminhoneiro, e a mãe, dona de casa, tiveram nove filhos: “quatro meninos, quatro meninas e eu”, diz ela.

Os meninos dormiam em um quarto, as meninas em outro. Já para Wal (seu apelido), o pai construiu um dormitório separado, onde antes ficava a dispensa da casa. É ali que ela dorme até hoje – agora, a única moradora da residência.

“Eu sempre fui Waldirene”, fala ela. Na infância, preferia as brincadeiras de menina. Enquanto os irmãos fingiam que eram cowboys, ela era a mocinha. “Queria ser igual às minhas irmãs. Por que eu nasci como eu era?”

Na adolescência, a feminilidade foi se acentuando. Não tinha pelos no rosto, sua voz não engrossou, sua cintura era levemente marcada. Além disso, passou a se interessar por homens.

Os problemas com a família também foram aumentando. O pai, inclusive, tentou tratar o filho “meio-termo” com hormônios masculinos. Até que Wal decidiu se afastar da família e foi viver em uma cidade próxima, também no interior de São Paulo, ganhando a vida como manicure.

Era apaixonada pelo mundo do cinema. Um dos seus passatempos era recortar fotos de atores e atrizes estrangeiros em revistas da época. Foi assim que conheceu a história de Coccinelle, dançarina de cabaré francesa que nasceu homem e foi operada. Wal passou a desejar para si a mesma metamorfose.

Pênis no nariz

“Farina foi ridicularizado por causa do processo. Teve uma grande perda de clientela. Faziam piada, diziam que quem fosse operar o nariz com ele sairia com um pênis implantado no rosto. Mesmo assim, continuou a fazer as operações (de mudança de sexo). Dizia que não podia virar as costas para os transexuais”, recorda Glaucio Farina, sobrinho do médico e também cirurgião plástico.

Depois da vitória na segunda instância, o pioneirismo de Farina acabou produzindo um legado positivo. Ainda em 1979, uma emenda a um projeto de lei abriu brecha para realizar esse tipo de cirurgia no Brasil. Ficou estabelecido que a retirada de órgãos não era punível quando considerada necessária em parecer médico unânime e com consentimento do paciente. O texto não fazia menção direta à mudança de sexo, mas era uma forma de proteger médicos como Farina de futuros processos.

Porém, foi apenas em 1997 que o Conselho Federal de Medicina (CFM) autorizou a realização de cirurgias de mudanças de sexo em transexuais – inicialmente, em caráter experimental. A partir de 2008, a cirurgia foi incluída no Sistema Único de Saúde (SUS) – os nomes utilizados atualmente são cirurgia de redesignação sexual, processo transexualizador ou cirurgia de afirmação de gênero. Desde então, mais de 400 procedimentos hospitalares foram realizados na rede pública.

“Farina foi um grande pioneiro, mas seu trabalho é pouco divulgado até hoje. O processo judicial contribuiu muito para o afastamento da academia e até do CFM em relação a ele. É preciso desfazer isso historicamente”, fala o endocrinologista Magnus Regios Dias da Silva, coordenador do Núcleo de Ensino, Pesquisa, Extensão e Assistência à Pessoa Trans da Universidade Federal de São Paulo, batizado em homenagem a Roberto Farina.

Criado há um ano, com participação da população trans, o núcleo conta com um ambulatório de atendimento de saúde. “Hoje, em 2018, é difícil trabalhar com esse ambulatório. Sofro todos os tipos de pressões transfóbicas – religiosas, políticas e até da academia. Imagina então naquela época, quarenta anos atrás. Farina foi um guerreiro, um visionário”, compara Magnus. Segundo ele, o cirurgião antecipou a concepção de atendimento à pessoa trans que o Brasil implementa hoje.

Uma mulher fantástica

A vida de Waldirene mudou completamente depois do processo contra Farina. Humilhada na Justiça, na imprensa e na cidade, a garota extrovertida começou a ter medo de sair de casa. Ainda hoje, quarenta anos depois, quando está em local público, ela tem a sensação de que está sendo observada e que as pessoas estão comentando sobre ela. O resultado é que passa a maior parte do tempo sozinha. A única exceção é o Carnaval, “uma oportunidade de sair da ostra”.

Waldirene continua a trabalhar como manicure, para complementar a aposentadoria de um salário mínimo. A clientela é esporádica – no dia da visita da BBC Brasil, atendeu apenas uma pessoa. Cobra 30 reais pelo pé e mão. O salão fica na antessala da casa onde vive. Os móveis, os objetos e parte dos eletrodomésticos parecem brotar dos anos 1980, intocáveis desde que os pais de Wal morreram.

“Tenho uma vidinha boa. Mas é uma vidinha. Não posso ter grandes sonhos”, diz ela. “Falar que a vida é bela? Não dá.” Os problemas de saúde estão se acumulando e é difícil encontrar médicos que entendam – e aceitem – suas cirurgias do passado. Um médico urologista com quem se consultou disse que “não acreditava” na sua vagina. Um oftalmologista quase caiu da cadeira quando ela contou que nasceu Waldir.

A garota do interior nunca se casou nem teve um relacionamento duradouro. Os homens da cidade falavam para ela: “Se eu posso ter uma mulher normal, por que vou ficar com uma imitação?”. Ela reclama que eles só queriam sexo, nunca amizade, companheirismo, romance. “Hoje eu sou solitária porque eu não quero ninguém se divertindo a minha custa.” Ainda hoje é uma mulher bonita, loira, curvilínea, quase sem rugas – embora custe a acreditar nisso.

Entre solidões e amarguras, Waldirene faz uma pausa na conversa com a BBC Brasil por causa de uma lembrança. Na juventude, ela cantava em serenatas, mas parou porque o pai achava que estavam tirando sarro dela. Agora, se recordou de uma interpretação de Nora Ney para um samba de Nelson Cavaquinho e sentiu vontade de cantar outra vez. Ela abre os braços e solta a voz:

“Sei que amanhã Quando eu morrer, Os meus amigos vão dizer Que eu tinha um bom coração / Alguns até hão de chorar E querer me homenagear, Fazendo de ouro um violão / Mas depois que o tempo passar, Sei que ninguém vai se lembrar Que eu fui embora / Por isso é que eu penso assim, Se alguém quiser fazer por mim, Que faça agora / Me dê as flores em vida, O carinho, a mão amiga, Para aliviar meus ais / Depois que eu me chamar saudade, Não preciso de vaidade, Quero preces e nada mais.”

Fonte:G1

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