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A água invisível que “comemos” todo dia sem saber (e seus problemas)

Atualizado há

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Podemos passar a vida inteira alheios ao fato de que água não só mata a sede, mas também sacia a fome, o que faz da agricultura uma atividade sedenta.

Comer água? A escolha das palavras pode parecer estranha, mas, acredite, nós “comemos” um monte de água todos os dias sem nos darmos conta. Por dia, uma pessoa bebe de 2 a 4 litros de água, incluindo a contida em sucos, refrigerantes e outras bebidas. No mesmo período, consome de 2 mil a 5 mil litros de água na forma de alimentos. Tudo quanto é alimento precisa de água para crescer, o que torna a agricultura um negócio extremamente sedento.

Sozinha, a atividade responde, em média, por 70% do consumo mundial do recurso. Mas isso é tão óbvio! Você deve estar pensando, e tem razão. Mas a obviedade tende a cair no esquecimento, já que não exige esforço para ser lembrada ou assimilada. Podemos passar uma vida inteira alheios ao fato de que água não mata só a nossa sede, mas também sacia a nossa fome.

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No rótulo do pão de forma integral ou do biscoito, água sequer é ingrediente. Mas para cultivar o trigo e produzir a farinha refinada, base desses alimentos, gasta-se na média mundial 1,8 mil litros de água por quilo. Cerveja aguada, não dá né? Mas, acredite, para produzir um copo de cerveja (de 250 ml), lá se vão outros 75 litros de água, sendo que a maior parte disso é só para cultivar cevada e outra culturas envolvidas na produção da bebida.

São números volumosos que que passam despercebidos por nós, consumidores, mas que podem ser estimados pelo cálculo da chamada “pegada hídrica”, do inglês “water footprint”.

O conceito da pegada hídrica, desenvolvido pelo pesquisador holandês Arjen Y. Hoekstra, abrange a quantidade de água total, direta e indiretamente, usada para produção de um produto. Sua essência se assemelha às de outras metodologias de contabilidade ambiental, como a pegada ecológica e de carbono: entender de que maneira a forma como vivemos, produzimos e consumimos deixa marcas no meio ambiente.

E o resultado pode surpreender. São necessário 1,7 mil litros de água, em média, para cada quilo de arroz colhido (que é transportado com casca para a usina de beneficiamento). A mesma quantia de batata exige, em média, 290 litros, ao passo que a laranja exige mais de 530 litros por quilo.  Tais cálculos levam em conta médias mundiais e, por tanto, variam de um país para o outro, dependendo das condições de cultivo, do clima, solo e técnicas empregadas.

Num país como o Brasil, megaprodutor de commodities agrícolas, junto com os contêineres cheios de café, soja, milho, açúcar e laranja que deixam os portos rumo ao mercado internacional todos os anos, saem toneladas de água, que foram usadas para a produção desses alimentos.

Como um grande player no mercado mundial de commodities, exportamos, por ano, 112 trilhões de litros de água virtual, segundo dados da Unesco compilados com base na metodologia da pegada hídrica. Somos o quarto maior exportador de “água virtual” do mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, Índia e China.

À medida que o Brasil se consolida como um grande fornecedor de proteína animal, com um crescimento acumulado na produção de carne bovina estimada em 10,4% entre 2017 e 2021, aumentam as preocupações sobre o volume de água embutido nessa produção. Na média mundial, o volume de água necessário para produzir 1 kg de carne bovina é de 15,4 mil litros.

O cálculo desse número é complexo, e depende de vários fatores, como local do sistema de produção, tipo de animal, o volume de água empregado na produção de insumos, como fertilizantes e medicamentos, a água usada na produção da ração animal, passando pelo volume usado na fazenda para dessedentação, irrigação e lavagem de instalações, até a água necessária para processar a a carne até levá-la ao consumidor final.

“Apesar da complexidade, esforços para conhecer o valor da pegada contribuem para melhorar a gestão da água na cadeia da pecuária e mitigar possíveis impactos. Mais importante do que chegar a um número, é mapear a relação dos elos da cadeia com a água”, explica ao site EXAME o pesquisador da Embrapa Pecuária Sudeste, Julio Cesar Pascale Palhares, que estuda os impactos das produções animais nos recursos hídricos.

Nos últimos anos, a Embrapa tem se debruçado sobre a calculadora, na tentativa de desenvolver indicadores de eficiência hídrica para avaliação do desempenho das diversas cadeias produtivas da carne brasileira. A meta é avaliar a sustentabilidade da atividade, possibilitando a identificação de pontos críticos no uso da água e ações para reduzir impactos negativos, melhorar a eficiência hídrica da produção e de quebra reduzir custos.

Praticar irrigação noturna, construir cisternas para captar água da chuva, instalar hidrômetros na propriedade, substituir mangueiras de fluxo contínuo por modelos de fluxo controlado e adotar programas de detecção de vazamentos são algumas medidas simples que ajudam o produtor rural a diminuir o consumo de água na fazenda.

Pequenos ajustes na dieta animal também dão sinais promissores. Em estudo sobre a pegada hídrica do leite com fazendas parceiras, os pesquisadores da Embrapa conseguiram reduzir em três litros o consumo diário de vacas leiteiras (15% de redução da pegada), com uma intervenção nutricional baseada no ajuste de proteínas na dieta durante o período de lactação. Segundo Palhares, considerando um rebanho de gado leiteiro de 100 animais, e o  período de lactação em torno de dez meses, a economia de água passaria dos 9 mil litros.

Embora as oportunidades para melhorar a gestão da água no setor sejam vastas, a disseminação de boas práticas no campo dependem de mudanças profundas de hábitos.

“Os produtores precisam internalizar no seu dia a dia o manejo hídrico, usar práticas, manejos e tecnologias que conservem água em quantidade e qualidade. Se ele está andando na propriedade e vê uma mangueira pingando, ele deve resolver isso. É importante enxergar a água como um fator essencial de produção, como é ração, por exemplo. O maior limitante é a questão cultural, aprendemos que no Brasil água é abundante e barata. Mas temos que desconstruir essa ideia, pois água é na verdade um recurso valioso, finito e com custo econômico e ambiental”, diz o pesquisador da Embrapa.

E não devemos nos esquecer que tão importante quanto ter água abundante é ter água em qualidade. A poluição hídrica, causada por agrotóxicos, fertilizantes e outros produtos agroquímicos que escoam para os lençóis freáticos, contaminando rios, lagos e reservas subterrâneas, é um problema crescente em todo o mundo e que compromete a saúde do meio ambiente.

A edição 2018 do Relatório Mundial das Nações Unidas sobre Desenvolvimento dos Recursos Hídricos, divulgada no Fórum Mundial da Água, que ocorre em Brasília, estima que a produtividade agrícola poderia aumentar em cerca de 20% em todo o mundo se práticas de manejo de água mais ecológicas fossem usadas.

Um estudo citado pelo relatório analisou projetos de desenvolvimento agrícola em 57 países de baixa renda e descobriu que o uso mais eficiente de água combinado com as reduções no uso de defensivos agrícolas e melhorias na cobertura do solo, aumentou a produção média de safras nos países estudados em 79%.

Desperdícios vão muito além do campo

Como você já deve ter percebido, nossos pratos estão transbordando de água. Mesmo com técnicas aprimoradas e eficientes de cultivo com menor desperdício, sempre precisaremos de água para plantar. Por isso, a responsabilidade pelo consumo consciente e eficiente de água vai muito além do campo e do agricultor.

Atualmente, o mundo desperdiça nada menos do que um terço dos alimentos que produz, de acordo com estudo do World Resources Institute (WRI) em parceria com o Programa Ambiental das Nações Unidas (Pnuma). A cada ano, 1,3 bilhão de toneladas de alimentos vão parar no lixo, um desperdício ultrajante de comida que reflete um desperdício de recursos naturais, contribuindo assim para impactos ambientais negativos.

Pelos cálculos da ONU, a água utilizada para produzir esses alimentos que são desperdiçados poderia encher 70 milhões de piscinas olímpicas, enquanto a quantidade de terras cultiváveis usadas para essa produção perdida é equivalente ao tamanho do México. Para piorar, um quarto da agricultura mundial está em áreas que sofrem um forte estresse hídrico, ou seja, onde a demanda de água supera, em muito, a oferta.

Em um Planeta mais quente, sujeito a eventos climáticos extremos, os danos à agricultura tendem a aumentar. De acordo com um novo relatório da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), entre 2005 e 2015, os desastres naturais custaram aos setores agrícolas das economias dos países em desenvolvimento US$ 96 bilhões em prejuízos. Isso representa quase um quarto de todas as perdas financeiras causadas por catástrofes naturais no período.

Há uma potencial crise a caminho, que poderá ser deflagrada pelo aumento populacional, a crescente pressão sobre os recursos naturais e um clima cada vez mais arisco. Em 1950, o planeta tinha três bilhões de habitantes; em 2050, seremos nove bilhões, o que colocará uma pressão adicional sobre os recursos hídricos.

Frente ao cenário nebuloso que se avizinha, compreender a relação entre a água e os padrões de produção e consumo de alimentos é um caminho, no mínimo, inteligente e saudável de mitigar riscos e, quem sabe, reduzir nossa pegada no mundo.

Fonte: G1

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